Em seu esforço para trazer ao leitor brasileiro publicações sobre a questão palestina, a Editora MEMO traz ao Brasil em língua portuguesa o livro “Engajando o mundo: a construção da política externa do Hamas”. De autoria do intelectual Daud Abdullah, diretor do Monitor do Oriente Médio, pesquisador e especialista em estudos árabes e islâmicos, a obra traz em 264 páginas a visão e o programa do partido político palestino para as relações internacionais desde sua fundação em meio à Primeira Intifada (1987-1993) até os dias atuais. Percorre, dessa forma, acontecimentos que marcam tanto a questão palestina quanto a existência do Hamas e os inúmeros desafios com que este vem se enfrentando regional e globalmente.
Com tradução a partir do original em inglês de Amanda Castro e prefácio da professora-doutora de História Árabe e História da Palestina no Departamento de Letras Orientais da Universidade de São Paulo (USP), Arlene Clemesha, a publicação é resultado de uma análise meticulosa a partir de fontes documentais árabes e entrevistas com lideranças do partido político palestino. Assim, converte-se em leitura obrigatória para todos e todas aqueles interessados em compreender o Hamas e sua batalha para romper com o isolamento imposto pelo lobby sionista.
Como apresenta Arlene Clemesha, vem, assim, “preencher uma enorme lacuna”. “São poucos os escritos bem fundamentados e livres de preconceito, em português, sobre um dos principais movimentos da resistência palestina, o Hamas. Menos ainda são aqueles que analisam a política. O autor, que teve contato com lideranças do movimento em diferentes momentos e países, mantém, não obstante, uma análise distanciada, crítica e não condescendente. Daud Abdullah, nascido no país caribenho de Granada, realizou boa parte de sua formação acadêmica em países árabes e hoje vive em Londres. Sua escrita expressa a inconfundível sensibilidade para temas complexos, de quem carrega, na própria biografia, o entrecruzamento de contextos e crenças. O autor se encontra, em vários sentidos, em uma posição ímpar para entregar a avaliação sofisticada que aqui se lê a respeito das relações exteriores e diplomáticas de um movimento de resistência”, enfatiza em seu prefácio.
Com abordagem bastante distinta da que é apresentada normalmente ao público brasileiro sobretudo pela mídia convencional e na academia, o livro desconstrói, assim, as deturpações que servem à criminalização do Hamas e vai além da análise reducionista que foca nas suas origens e caráter islâmico, sem observar a evolução desse partido ao longo de sua trajetória e desdobramentos. Assim, constitui-se em documento ímpar para um melhor entendimento das realizações e deficiências do Hamas.
A política externa adotada, como mostra o autor, é pragmática. Segundo escreve ele, suas diretrizes são manter a “independência na tomada de decisões, busca de pontos em comum, evitar alianças conflitantes, evitar a promoção de hostilidade a outros, controle da resistência armada dentro dos limites do mandato britânico da Palestina [o que abrange todo o território histórico, ou seja, inclusive as áreas ocupadas por Israel em 1948]”, além de uma opção de “não interferência em assuntos internos dos outros estados” com que o Hamas busca engajamento.
Ao desenvolver sua análise sobre a política externa do partido, dr. Daud Abdullah parte do primeiro desafio enfrentado por este, quando o Iraque ocupou o Kuwait em 1991, país que reunia cerca de 450 mil palestinos, “uma das maiores e mais ricas comunidades na diáspora”, incluindo “vários líderes sêniores do Hamas”. Passa por momentos cruciais da vida do partido político palestino e pouco conhecidos do público em geral, como a expulsão de 415 de seus membros por Israel para Marj az Zuhur, no sul do Líbano, em dezembro de 1992, para demonstrar como o Hamas soube aproveitar essa situação dramática para ampliar suas relações internacionais. Aborda, na sequência, os acordos de Oslo firmados pouco tempo depois, em setembro de 1993, entre a Organização para a Libertação da Palestina (OLP) e Israel, sob intermediação dos Estados Unidos. Debruça-se ainda sobre o estudo da vitória do Hamas nas eleições palestinas de 2006 e as consequências diplomáticas desse acontecimento, em meio ao que o autor denomina “boicote internacional”, com o aprofundamento de seu isolamento e criminalização ironicamente em meio à disposição do partido de uma “trégua de longo prazo” com Israel para que pudesse concorrer ao pleito, conforme os acordos de Oslo, e aparentemente – como também avalia o autor – mostrar a seus interlocutores que estaria aberto ao diálogo e negociação. O não reconhecimento do resultado das eleições democráticas representa, como explicita o dr. Daud Abdullah, contudo, perseguição sem precedentes ao Hamas e aprofundamento de suas divergências com o Fatah.
Talvez o ápice do livro, que representa uma ruptura com a diretriz de não interferência nos assuntos internos de outros estados, seja a parte dedicada ao fato de o Hamas ter decidido se retirar da Síria, onde contava com uma base regional importante, durante o processo revolucionário inaugurado em 2011, por se recusar a apoiar a repressão do ditador Bashar al-Assad contra a população.
O autor discorre sobre esse posicionamento, ao encontro do sentimento das massas árabes, e suas implicações para o partido do ponto de vista da diplomacia regional ao final da obra, quando aborda as relações do Hamas, além da Síria, com atores como Irã, Turquia, Qatar e os países que compõem os Brics (Brasil, Rússia, Índia, China e África do Sul).
O livro, por fim, se mostra fundamental para uma análise honesta sobre o Hamas, sem caricaturas, idealizações e livre de preconceitos. Vale desfrutar da leitura. A edição está disponível na Amazon.