Palestina Através dos Milênios – Uma história das letras, aprendizado e revoluções educacionais

Autor(a):
Editora Editora MEMO
Publicado em 2 de maio de 2025
Tipo de Publicação Capa comum
Nº de páginas 486
Idioma Português
ISBN 978-65-993790-7-9

A leitura do segundo livro em português sobre milênios da história palestina de Nur Masalha nos permite entender a dimensão do ataque à cultura no genocídio em curso em Gaza e Cisjordânia, quando memória e conhecimento palestinos são alvos deliberados dessa guerra.

São muitos os casos de ataque à memória dos povos colonizados, com a destruição monumentos, prédios antigos, símbolos sagrados e a substituição de nomes de ruas, logradouros e comidas por outros do colonizador. As Américas ainda buscam remanescentes de velhas civilizações indígenas. Em seu primeiro livro, Nur Masalha já recolheu provas e evidências da riqueza de uma Palestina histórica hoje aviltada e transfigurada pelo colonizador. A derrubada de locais religiosos, escolas, casas, cemitérios, estátuas e similares busca apagar rastros dos antigos habitantes.

Neste segundo livro, agora focado nos processos de ensino, letramento e revoluções educacionais ao longo do tempo, Masalha vasculha registros e fragmentos de todo tipo de local cuja existência remete à transmissão cultural, como antigos templos religiosos de várias fés,  anfiteatros, escolas e bibliotecas, e até mesmo locais de alojamento de peregrinos e professores em tempos antigos.

Somente nos 15 meses de guerra em Gaza desde o 7 de outubro de 2023, Israel destruiu 200 sítios arqueológicos palestinos. E os bombardeios israelenses no período deixaram cerca de 85% das escolas inoperantes — parcial ou totalmente destruídas —, segundo estimativas oficiais palestinas.

Locais físicos e edifícios, porém, ocupam apenas parte da memória de um povo que tem a educação como um processo histórico de interações na produção da cultura com o mundo ao redor e além. Particularmente nesta obra focada nos processos de ensino e revoluções educacionais ao longo do tempo, enxergamos a Palestina protagonista e co-produtora de conhecimento legado à história humana. É um componente impossível de remover da identidade palestina e que  parece aguçar ainda mais a sanha destruidora e genocida do atual ocupante.

Masalha introduz este livro como resposta eloquente à negação sionista da história palestina de alfabetização, educação e cultura literária, somada à tentativa de apagá-la fisicamente.

Marsalha vai às tábuas de argila cuneiformes e a educação suméria que  incluía em seu currículo a reprodução de textos literários conhecidos nas culturas antigas da Palestina e da Síria.  Cópias da Epopeia babilônica de Gilgamesh, poema escrito na língua acadiana semítica mil anos antes de Cristo e ensinado no Crescente Fértil foram encontradas em Megido, cidade-estado da Palestina na Idade do Bronze média.

Intelectuais importantes início da era cristã, como o historiador judeu Josefo e o cristão Orígenes, são nomes relacionados com a formação helenística da Palestina, em que todos – locais e estrangeiros, de qualquer religião, aprendiam juntos. Na Palestina bizantina,  sua mundialmente famosa Escola retórica de Gaza empregava uma filosofia educacional de cidadania idealizadora de uma cidade-estado de habitantes autogovernados.

A Escola de Gaza, reflete Masalha, foi modelada nas duas famosas academias clássicas de Atenas: a Academia de Platão e o Liceu de Aristóteles. As elites cristãs classicamente educadas de Gaza foram influenciadas pelos ideais de paideia de Platão e pelo estado ideal em A República, que moldou o pensamento político e inspirou ideias cívicas no islamismo clássico.

Na antiguidade tardia as duas cidades mais avançadas e letradas da Palestina eram a  Cesaréia-Palestina, a capital da Palestina Bizantina, e Gaza, com uma das maiores bibliotecas dos clássicos na região do Mediterrâneo e sua renomada escola filosófica ,que substituíram Atenas e Alexandria como os principais centros de aprendizado para toda a região do Mediterrâneo.  Iam da grande Biblioteca de Alexandria, passando por cidades palestinas, até Cairo e Atenas e essas cidades, mostra Masalha, sempre se relacionavam entre si e mantinham trocas comerciais, diplomáticas e culturais.

A Biblioteca de Metropolis Palaestinae (Cesaréia) era, como a de Alexandria, um importante centro de aprendizado e disseminação de conhecimento na Palestina Bizantina, onde não apenas se traduzia e anotava manuscritos , mas se criava  obras próprias com ampla disseminação. A tradução, aliás, sempre foi uma grande atividade da Palestina ávida pelo conhecimento vindo do estrangeiro.

Uma atenção especial é dada por Masalha à interação cultural com os cruzados latinos, ao tratar do primeiro Reino Latino de Jerusalém (1099–1187). Quando os cruzados europeus invadiram a Palestina de maioria muçulmana em 1099, eles encontraram lá um nível cultural e técnico de desenvolvimento desconhecido na Europa contemporânea. E por outro lado deixaram seu legado em meio aos enfrentamentos. Masalha lamenta que, por serem lembrados na Palestina especialmente pelo  fanatismo, pilhagens e atrocidades bárbaras, que foram reais, ficam esquecidas as artes, arquitetura, cultura, bibliotecas e iluminuras de manuscritos que eles também criaram. Ao passo que se degladiavam nos campos de batalha, eram reais as trocas comerciais e culturais, de ideias e tecnologias, entre muçulmanos e cruzados. Esse encontro cultural levaria mais tarde à transmissão do aprendizado árabe e da herança arquitetônica para a Europa medieval.

De 1878 a 1953, encontramos as dinâmicas “cidades de aprendizagem” e as reformas educacionais de Khalil Sakakini (1878–1953), defensor da educação humanista árabe nahda (renascentista), que introduziu a filosofia da alegria ou do prazer de aprender. Em seus diários, ele discute a educação para o despertar cultural e intelectual, tolerância religiosa e dignidade humana, entre outros assuntos que incluiam a educação das mulheres. Sakakini se colocou terminantemente contra castigos corporais no ensino. Ele próprio atribuiu sua filosofia (falsafat al-surur) a Ibn Miskawayh, que escreveu: ‘A tristeza não é necessária nem natural. Devemos mergulhar na vida e apreciá-la celebrando nossas noites… devemos nos entregar à música e ao canto. Se desastres vierem em nosso caminho, devemos recebê-los corajosamente e evitar que a tristeza nos consuma’

Parece que tais ensinamentos foram incorporados pela alma palestina com a coragem de levantar-se entre escombros para enfeitar as ruínas de casas que já não existem, com lanternas de papelão em um Ramadã sob bombardeio. A educação para celebrar a vida em tendas improvisadas no deslocamento forçado afronta a nossa compreensão ocidental do que seja resistência quando é a sobrevivência física o que está em jogo. O poema sumério que circulava pelo Oriente Fértil conta a história de um rei que persegue a imortalidade e não a vence, a não ser pelo fato de que o poema sobrevive há milênios na literatura. A resiliência presente na cultura palestina parece transcender a convivência com a morte e as perdas inimagináveis e manter viva a noção de Palestina como um todo, cada vez mais reconhecida em sua existência pelo mundo, contrastando e aumentando o fúria do agressor.

São reais as mortes de 50 mil em Gaza e quase 20 mil crianças, que tornam não apenas Israel, mas a comunidade internacional exposta pelo abandono ativo. A educação é um alvo deliberado e obcecado do sionismo.

O Gabinete de Imprensa do governo em Gaza contabilizou ao menos 12.800 estudantes e 800 professores e trabalhadores docentes mortos por Israel, e 1.166 estabelecimentos de ensino destruídos desde outubro de 2023. Mais de 85% das escolas ficaram inoperantes. E no entanto, com o ano letivo começando em meio à retomada da guerra, a Palestina mandou as crianças para as escolas. Mais de cem mil estudantes se matricularam nos colégios de Gaza restantes para as aulas que começaram em 23 de fevereiro.

É difícil entender o tamanho dessa resiliência. Nur Masalha, ao investigar a Palestina em sua travessia cultural de milênios, nos ajuda a perceber.

Sobre o(a) autor(a)

Nur Masalha

Nur Masalha é historiador palestino e membro do Centro de Estudos Palestinos (Soas) da Universidade de Londres. É editor do Jornal da Terra Santa e Estudos Palestinos. Tem diversos artigos e livros publicados sobre o êxodo palestino de 1948, entre eles The Palestine Nakba: Decolonising History, Narrating the Subaltern Reclaiming Memory (Zed, 2012), The Zionist...

Mais sobre o(a) autor(a)
searchadd-to-cartfacebookhomeinstagramcredit-cardtwitterdelivery whatsappyoutuberssright-chevrondownloadclose